Mobilidade Humana

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Segundo o filósofo espanhol Jaime Balmes, o valor que damos para as coisas é proporcional à utilidade que as mesmas têm para nós. Porém, o movimento cíclico da existência humana nos convida a rever valores, especialmente, pela medição do quão útil algo passa a ser para a vida em sociedade. Na última década, iniciamos esse momento de revisão, na gestão do trânsito brasileiro.

O próprio conceito de trânsito, usado preferencialmente a tratar dos automóveis de passeio, nasceu da cultura carrocentrista, disseminada no Brasil a partir dos anos 50, sucateando a malha ferroviária para a substituição das adoradas rodovias com suas pistas comparadas a “tapetes”, além da cultura urbanística das cidades projetadas em escala para os carros, onde a largura das ruas se sobrepunha à necessidade das calçadas. Ciclovias e corredores de ônibus sequer existiam.

Em pouco tempo, com a euforia dos novos empregos das fábricas automobilísticas, o carro deixou de ser um mero meio de transporte e passou a ser adorado, como símbolo de status, cuja simbiose transformou a máquina em extensão do homem, que passou a almejar instintivamente vias mais largas para expressar sua virilidade em combustão. Acelerar passou a ser um prazer natural, aceito por todos, até pelas paradas de sucesso da época, que cantarolavam que se subia a “Rua Augusta a 120 km por hora”.

Porém, os resultados mostraram que fomos na direção errada. O carrocentrismo se mostrou inútil para a vida em sociedade, salvo talvez nas pistas de Fórmula 1, a cultura da hostil disputa acelerada pelo espaço das ruas, em detrimento à gentil cultura do seu compartilhamento, trouxe a morte, os órfãos, viúvos, viúvas, inválidos e o desperdício de milhões, dos impostos pagos, que ao invés de irem para o bem estar da população, foram sugados pelo prejuízo previdenciário e despesas de saúde em socorro às vítimas do trânsito.

Conforme apurou o Observatório Nacional de Segurança Viária – ONSV, 1,3 milhões de pessoas morrem no mundo por ano vítimas de acidentes de trânsito, e 20 a 50 milhões são feridas pela mesma razão.

Diante de contundentes resultados, o mundo despertou para equívoco em curso, e escolheu tirar o carro do centro das decisões, para que o “objeto” inserido dentro desta caixa de lata, o ser humano, passasse a ser o novo norte do pensamento urbanístico nas cidades, e o deslocamento passou a ser a nova utilidade a ser perseguida, a mobilidade urbana.

A proposta do equilibrado compartilhamento das vias públicas, com amplas calçadas, ciclovias, corredores de ônibus, rotas de cargas e inteligência de tráfego para o seguro e fluído trânsito veicular, apontou novos caminhos viáveis de integração de modais e garantia de deslocamento aos cidadãos.

Dentre as inúmeras técnicas estudadas, a diminuição da velocidade média nos centros urbanos, onde os pedestres, ciclistas e motociclistas estão mais expostos, se mostrou como medida urgente para o sucesso da meta de reduzir em 50% as mortes no trânsito, lançada pela ONU – Organização das Nações Unidas, no trabalho de pacificar esta silenciosa guerra em andamento, assassinando milhões de vidas nas ruas do mundo.

Como maior desafio para esta implantação, está a frustração causada aos “filhos” da era carrocentrista, que quando convidados a diminuir a velocidade de deslocamento dentro das cidades, recebem tal comando como sinal de “castração” da sua virilidade motorizada, mesmo tal ato auxiliando-o a não cometer os crimes de homicídio culposo ou lesão corporal culposa, com sua máquina possante em veloz deslocamento.

Campanhas educativas junto às escolas e centros de formação de condutores são fundamentais para a semeadura deste novo despertar. Da mesma forma, a coragem de gestores sérios, cientes do dever de proteger a vida de todos, mesmo que isso lhe custe alguns votos perdidos dos egocêntricos motorizados, é a ordem a ser dada para que a rigorosa e eficiente fiscalização, seja capaz de proteger a segurança viária dos cidadãos.

Como exemplo, cita-se a cidade de Jacareí-SP, terceira economia do Vale do Paraíba Paulista, que com seus 235 mil habitantes e mais de 140 mil condutores assim o fez em 2017, com a implantação do ousado Programa Municipal de Segurança Viária, que dentre diversas ações de educação, operação e fiscalização de trânsito e transporte, reduziu os limites de velocidade para 30 km/h em vias locais, 40 km/h em vias centrais e 60 km/h nas avenidas de acesso da cidade.

Como resultado, além do alarde inicial de uma minoria de condutores, a cidade saiu de 25 mortos no trânsito em 2016 para apenas 8 mortos em 2021, dentre eles destacam-se os ciclistas que de 6 vítimas fatais em 2016 registrou-se apenas uma ocorrência em 2021; resultado ainda mais exitoso entre os pedestres que de 6 cidadãos mortos por atropelamento nas ruas da cidade em 2016, zerou o número desta ocorrência no ano passado, algo inédito desde o início da série história de medição realizada pelo sistema Infosiga do DETRAN-SP.

Lembrando o filósofo espanhol antes citado, se é a utilidade dos atos concretos, medidos pelos resultados, o indicador do valor que devemos dar as coisas, é certo que o carrocentrismo de ontem, cada vez mais superado pela mobilidade urbana de hoje é valor que não mais nos representa, pois, quando posto à prova por anos, nos ceifou a vida, valor maior de todos nós, que devemos trabalhar diariamente pelo direito de termos nosso deslocamento feito por meio de um trânsito gentil e seguro, e nossas cidades pensadas e planejadas em função não mais das máquinas, mas única e exclusiva da mobilidade humana.

 

Edinho Guedes é advogado, professor federal de gestão e direito, pós graduado pela PUC, Escola de Governo da USP, mestre em gestão e desenvolvimento regional, doutorando em engenharia e infraestrutura pelo ITA e Secretário de Mobilidade Urbana de Jacareí-SP.

 

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