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Entre o cisco e o espelho: um ensaio sobre o julgamento

Julgar é uma das ações mais humanas e, paradoxalmente, uma das menos humanas. Fazemo-lo com a naturalidade de quem respira, como se as palavras que lançamos sobre o outro fossem isentas de peso e não lanças que atravessam a alma. O julgamento nasce, quase sempre, da pressa: a pressa de concluir sem compreender, de reduzir o mistério do outro a uma caricatura. “Julgar os outros é uma maneira cômoda de evitar ter que olhar para si mesmo”, escreveu Carl Jung, que sabia como poucos que o inconsciente humano prefere projetar suas sombras a enfrentá-las. Cada vez que apontamos o dedo, esquecemo-nos de que há três dedos voltados em nossa direção.

O Evangelho nos previne com a clareza de uma lâmina: “Por que reparas no cisco que está no olho do teu irmão, e não vês a trave que está no teu?” (Mateus 7,3). Jesus não denuncia apenas a hipocrisia de quem julga, mas também a cegueira de quem se exime do autoconhecimento. O julgamento, nesse sentido, é um desvio do olhar. Olhamos para o outro para não enxergar o que há em nós. E ao fazê-lo não percebemos que o julgamento é, antes de tudo, uma confissão - não do outro - mas de nós mesmos.

Santa Catarina de Sena, em uma de suas cartas inflamadas, dizia: “Aquele que conhece a si mesmo, humilha-se; e quem se humilha, não julga”. Para a santa dominicana a raiz do julgamento é a soberba espiritual, o esquecimento de que toda alma é campo em que Deus trabalha de modo misterioso. Julgar é ocupar o lugar de Deus, é pretender conhecer o interior alheio sem sequer conhecer o próprio. Há, portanto, uma arrogância velada em cada sentença que emitimos sobre os outros, um eco do orgulho primordial de Adão - o desejo de saber o bem e o mal por conta própria.

O julgamento veste muitas máscaras. Às vezes se disfarça de zelo moral; outras vezes de preocupação fraterna. “Não é julgamento, é apenas uma constatação”, dizemos, como se houvesse neutralidade possível na leitura do humano. Mas todo olhar carrega um prisma: o do nosso passado, de nossas dores, de nossos medos. “Cada qual vê o mundo do tamanho de seu coração” (Fernando Pessoa). E se o coração é pequeno, tudo parece pequeno; se o coração é duro, tudo parece digno de condenação.

Há quem julgue para se afirmar, quem julgue por inveja, quem julgue por medo - medo de que o outro seja o que ele não consegue ser. O julgamento é, de certa forma, um modo de controle. Ao reduzir o outro à sua falha, sentimos uma ilusória superioridade, um pequeno alívio narcísico que encobre nossa própria insuficiência. “A crítica é o refúgio dos que temem criar”, escreveu meu escritor favorito: Oscar Wilde. Eu penso que o julgamento é o refúgio dos que temem se conhecer.

O ato de julgar revela mais sobre o julgador do que sobre o julgado. A personalidade que vive a julgar é, geralmente, ansiosa por certezas e avessa à ambiguidade. São pessoas que não suportam o mistério do humano e o humano é, por essência, ambivalente, contraditório, imperfeito. Julgar é uma tentativa de eliminar a incerteza, de ordenar o caos que o outro nos provoca. É um gesto de defesa, não de compreensão. Quem julga excessivamente busca proteger-se daquilo que não entende em si mesmo.

Santa Catarina de Sena também advertia: “Deus é aquele que vê o interior, e não o exterior; e só Ele conhece as intenções do coração.” Essa frase ressoa como uma libertação e uma advertência. Libertação porque nos desobriga de carregar o fardo de julgar os outros. Advertência porque nos lembra que o olhar de Deus é o único verdadeiramente justo e o nosso é sempre míope. No mundo contemporâneo, no entanto, onde as redes sociais transformaram a opinião em espetáculo, julgar tornou-se quase uma espécie de “virtude”. Vivemos tempos de (falso) moralismo digital, em que cada deslize é exposto e cada erro alheio é celebrado com indignação coletiva. Julgar virou passatempo, e o perdão, fraqueza.

O julgamento, quando alimentado e tomado como hábito torna-se vício da alma. Enrijece o coração, destrói a empatia, apaga a compaixão. Quem vive a julgar esquece de amar, pois o amor - como disse São João da Cruz - “não consiste em sentir grandes coisas, mas em ter grande despojamento e humildade”. E a humildade é o oposto do julgamento. A humildade reconhece que todos somos feridos, todos estamos em processo, todos temos uma trave em nossos olhos.

Julgar é uma recusa à misericórdia. É negar ao outro o mesmo espaço de erro e aprendizado que desejamos para nós. “Quem de vós estiver sem pecado, atire a primeira pedra” disse Jesus à multidão que condenava a mulher adúltera. E, um a um, os acusadores se retiraram. Essa cena, tantas vezes lida, é também uma parábola sobre o espelho: quanto mais reconhecemos nossas próprias sombras, menos pedras temos nas mãos.

Nietzsche, com sua ironia trágica, afirmava que “ninguém é suficientemente rico para pagar o preço de julgar o outro”. O julgamento nos empobrece porque transforma o coração em tribunal e o mundo em réu. E quando todos são réus ninguém é absolvido. Por isso, talvez a verdadeira sabedoria consista em suspender o julgamento, em cultivar o silêncio diante do que não compreendemos. “A misericórdia triunfa sobre o juízo”, escreve São Tiago (2,13).

Aquele que julga menos ama mais. E quem ama mais enxerga melhor. O olhar purificado pela caridade é o único que realmente vê. Santa Teresa d’Ávila, outra gigante doutora da fé, dizia: “A humildade é andar na verdade”. Julgar é andar na ilusão: a de que sabemos mais do que sabemos, a de que somos melhores do que somos.

Quando cessamos o julgamento, algo se abre dentro de nós - um espaço de acolhimento, de escuta, de paciência. É nesse espaço que floresce o perdão e onde o humano reencontra sua dignidade. Julgar é uma forma de separação; compreender, uma forma de união.

E se há uma estrada de retorno à paz, ela passa por esse reconhecimento: o outro não é o espelho em que devemos buscar nossas faltas. Ele é companheiro de caminho, igualmente frágil, igualmente amado. Julgar o outro é, no fim, julgar a Deus em sua obra e isso é tarefa que ultrapassa a alçada humana.

Talvez o segredo esteja em fazer do olhar um altar, não um tribunal. Em vez de condenar, aprender a ver. Em vez de medir, aprender a compreender. Em vez de julgar, amar - não com ingenuidade, mas com a consciência de que cada alma é um universo em construção e de que o papel do homem justo, do ser humano inteiro, é apenas este: enxergar a trave em seu próprio olho e, com humildade, pedir a luz para retirá-la.

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