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Entre a Liberdade e o Vazio: O Brasil após o Fechamento dos Manicômios

O Brasil viveu, nas últimas décadas, uma transformação profunda no campo da saúde mental. Inspirado pelo movimento antimanicomial europeu, especialmente pelas ideias de Franco Basaglia na Itália, o país iniciou nos anos oitenta um processo de desinstitucionalização que culminou na Lei 10.216/2001, marco da reforma psiquiátrica brasileira. Essa lei estabeleceu que o tratamento de pessoas com transtornos mentais deveria ocorrer preferencialmente em serviços comunitários, e não em hospitais psiquiátricos de longa permanência.

A partir daí, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) foram criados como alternativa ao modelo hospitalocêntrico. A proposta era clara: substituir o isolamento por cuidado territorial, multiprofissional e voltado à reinserção social. Em 2023, o Conselho Nacional de Justiça determinou o fechamento dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, conhecidos como manicômios judiciários. Até 2024, mais de 30 unidades haviam sido extintas, com milhares de internos transferidos para hospitais gerais ou CAPs.

Não há dúvida de que o fechamento dos manicômios representou um avanço civilizatório. Durante décadas, essas instituições foram palco de violações de direitos humanos: superlotação, abandono, maus-tratos e exclusão social. A reforma trouxe dignidade, liberdade e a possibilidade de tratamento em ambientes menos opressivos.

Os CAPs, nesse sentido, são espaços fundamentais. Eles oferecem atendimento multiprofissional, oficinas terapêuticas, acompanhamento ambulatorial e apoio à reinserção social. São serviços que buscam romper com o estigma da loucura e aproximar o paciente da comunidade.

Os CAPs são, sem dúvida, uma conquista. Eles funcionam como serviços substitutivos, oferecendo atendimento multiprofissional (psiquiatras, psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais), oficinas de arte, trabalho e convivência, acompanhamento ambulatorial e visitas domiciliares e apoio à reinserção social, evitando exclusão e estigma. Entretanto, o fechamento dos hospitais psiquiátricos não foi acompanhado da criação de alternativas robustas para casos graves. E aqui reside o dilema: como garantir dignidade sem deixar desassistidos aqueles que necessitam de internação prolongada? Hoje o cenário real mostra quatro pontos bastante preocupantes:

-A falta de leitos especializados: pacientes em crise aguda ou com transtornos mentais graves não encontram vagas adequadas para internação.

-A sobrecarga dos CAPs: criados para atendimento comunitário, os CAPs não têm estrutura física ou humana para internações longas.

-O risco à segurança: indivíduos inimputáveis que cometeram crimes passaram a ser encaminhados para hospitais gerais ou CAPs, que não possuem condições de lidar com casos de alta complexidade.

-As famílias desamparadas: muitas vezes, os familiares não têm suporte para lidar com pacientes em crise, e o sistema não oferece alternativas claras.

É preciso reconhecer: os CAPs não foram concebidos para internações complexas. Sua lógica é comunitária, não hospitalar. Isso gera uma lacuna evidente no sistema: pacientes que precisam de internação prolongada ficam sem alternativa.

O fechamento dos manicômios foi, sem dúvida, um passo necessário. Mas a forma como foi conduzido deixou o sistema incompleto. A política antimanicomial trouxe avanços, mas também expôs fragilidades. É preciso refletir. Liberdade sem suporte é abandono. Garantir que pacientes não sejam isolados em manicômios é fundamental, mas não basta. É necessário oferecer alternativas seguras e eficazes para casos graves.

O sistema híbrido é urgente. O Brasil precisa discutir modelos que mantenham o espírito da reforma — evitando abusos e exclusão — mas que garantam leitos especializados para internações necessárias.

A dignidade exige estrutura. Não basta fechar instituições; é preciso construir novas formas de cuidado, com recursos, profissionais e políticas públicas consistentes.

A sociedade sente os efeitos dessa lacuna. Pacientes graves circulam entre CAPs, hospitais gerais e famílias desamparadas. Profissionais de saúde mental enfrentam sobrecarga e falta de recursos. Comunidades convivem com o desafio de acolher sem ter suporte adequado.

O resultado é um sistema fragmentado, que avança em direitos humanos, mas falha em oferecer respostas concretas para os casos mais complexos.

O Brasil precisa encarar a realidade: o fechamento dos manicômios foi apenas o começo. A reforma psiquiátrica não pode se limitar à desinstitucionalização; ela deve incluir a criação de alternativas sólidas para internação, sem retroceder ao modelo asilar.

É hora de discutir políticas públicas que garantam leitos especializados em hospitais gerais, serviços híbridos que conciliem liberdade e internação, apoio às famílias e comunidades e investimento consistente em saúde mental. Sem isso, o país corre o risco de transformar uma conquista histórica em um vazio perigoso. A dignidade não pode ser apenas um discurso; ela precisa ser sustentada por estrutura, recursos e compromisso real com os mais vulneráveis.

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