O Colégio que Mora em Mim
Há escolas que atravessam nossas vidas como rios tranquilos: acompanhamos seu curso sem perceber que ao longo do caminho elas estão nos moldando, polindo nossas pedras, conduzindo-nos a margens que só mais tarde reconheceremos como parte essencial de quem nos tornamos. O Colégio São José, em Limeira, foi esse rio para mim. Um rio largo, sólido, constante; daqueles que marcam território na memória e no coração.
Antes de falar da menina que fui dentro de seus muros, vale voltar um pouco no tempo. O Colégio São José foi fundado em 26 de janeiro de 1921, sob a direção da Madre Maria de Santo Inocêncio Lima, juntamente com um grupo de Irmãs Dominicanas que traziam consigo a missão de educar com fé, rigor e dedicação. Desde sua origem, o colégio nasceu com o propósito claro de formar não apenas alunos, mas pessoas inteiras, comprometidas com valores humanos e espirituais. dentro de seus muros. O Colégio São José tem o propósito claro de educar com disciplina, afeto e espiritualidade. Fundado pelas irmãs que carregavam no semblante a vocação do cuidado e na postura a firmeza de quem acredita que a educação é caminho de transformação, o colégio tornou-se, ao longo das décadas, parte do tecido cultural e afetivo da cidade. Não há limeirense que, ao ouvir seu nome, não evoque alguma lembrança: um desfile de 7 de setembro, o toque do sino (que na verdade era uma campainha de som alto e grave), o uniforme com sua saia de pregas azul marinho, o cheiro do pátio e da cantina. O São José é desses lugares que se confundem com minha própria história local.
Foi ali que cheguei aos seis anos, pequena, com o uniforme vermelho da educação infantil, as meias bem puxadas e o cabelo cortado igualzinho ao de um playmobil. Eu segurando a lancheira como se fosse um passaporte para um mundo novo e foi naquele ano que eu comprei o meu primeiro cachorro-quente na cantina. O primeiro de muitos porque naquele colégio eu permaneci até os dezoito, quando saí com o diploma do curso de magistério nas mãos – um curso que já não existe mais, mas que formava, com enorme dedicação, professoras primárias.
Durante esses anos, usei praticamente o mesmo uniforme. Mudávamos, nós; mudavam os professores; mudavam até as salas, que ganhavam nova pintura ou carteiras. Mas o uniforme seguia firme, acompanhando nossos crescimentos e nossas travessias. Era mais do que roupa: era símbolo de pertencimento. Vestir-se igual não apagava nossas diferenças; apenas fazia com que, por alguns instantes, todos estivéssemos alinhados em uma mesma direção. Tentávamos dar um toque pessoal ao uniforme, inclusive dobrando o cós da saia cujo comprimento era até o meio dos joelhos; entretanto as irmãs eram atentas e astutas – elas tinham muita destreza para puxar as saias de volta ao comprimento inicial.
Do São José guardo memórias que brilham. E outras que doem um pouquinho — porque formar-se é também tropeçar, aprender, descobrir limites. Mas é impossível falar do Colégio sem lembrar da fanfarra, que era o grande orgulho das festividades cívicas. Participei dos desfiles de 7 de setembro tocando lira, um instrumento musical melódico de bastante destaque que eu tocava com um entusiasmo tão grande que resiste intacto na lembrança. O som metálico, repetido à exaustão nos ensaios, fazia parte da trilha sonora da minha adolescência. A fanfarra nos ensinava algo que, mais tarde, percebi ser profundamente humano: sincronizar-se com o outro para que o conjunto fizesse sentido.
Houve também professoras inesquecíveis. Cada uma, a seu modo, foi escrevendo em nós pequenas anotações que só muito tempo depois começamos a decifrar. Muitas delas jamais souberam o peso que tiveram em minhas escolhas. Professoras que seguraram nas minhas mãos, que me empurraram para a leitura, outras que me fizeram sentir vergonha,
resolver problemas, entender regras e, principalmente, questionar. A educação católica, que atravessava todo o ambiente do colégio, era vivida com intensidade, mas também com delicadeza. Havia orações, missas comemorativas e aula de religião. Os valores que eram passados nos acompanhavam e mesmo hoje, se manifestam como fios sutis que atravessam minhas decisões. Não havia imposição tampouco intolerância, muitas amigas e colegas de sala não eram católicas, entretanto havia um respeito tão grande de ambas as partes que, infelizmente é raro nos dias de hoje.
E então havia as amizades. Ah, as amizades. Algumas nasceram na pré-escola, outras no magistério, mas tantas resistiram ao tempo. São laços que desafiam quilômetros, agendas apertadas, vidas diferentes. Crescemos juntas, nos reinventamos, mudamos de rotas, -mas quando nos reencontramos, é como se o pátio do São José ainda estivesse ali, com seus cantos acolhedores e sua imagem de São José aos pés da qual nos sentávamos para conversar sobre tudo e sobre nada até que o sinal tocasse e a movimentação de volta para as salas de aula começasse escadas acima.
A verdade é que nunca sabemos o que significamos para uma escola. Talvez, para ela, sejamos apenas mais um nome nos arquivos de ex-alunos, mais um rosto perdido em fotografias amareladas guardadas em armários antigos. Mas o que uma escola significa para nós - isso, sim, é indescritível. Uma escola é feita de tempos, de cheiros, de sons; é feita de pessoas que passam e deixam rastros; é feita de alegrias, medos e descobertas que moldam nossa sensibilidade.
O Colégio São José foi minha segunda casa por treze anos. Foi o cenário onde aprendi a ler o mundo, onde descobri minhas primeiras paixões e meus primeiros receios, onde sonhei com futuros possíveis. Foi ali que entendi que educação é mais do que ensinar conteúdos: é acompanhar histórias, é acolher percursos, é acreditar no potencial de cada criança que atravessa o portão.
Hoje, morando em outra cidade, quando raramente passo em frente ao prédio reformado que quase nada tem a ver com o Colégio que vive no meu mundo interno ou quando me deparo com alguma fotografia antiga, sinto uma saudade que não pesa: ela flutua. É uma saudade grata, luminosa, daquelas que aquecem em vez de ferir. Saudades de quem fui, de quem encontrei, de quem se formou comigo.
Escrevo esta crônica para os ex-alunos que, como eu, carregam o São José como parte de sua própria formação sentimental. Que, ao lerem estas linhas, possam lembrar-se de seus próprios momentos: o primeiro dia, o recreio preferido, a professora marcante, o amigo que ainda permanece.
Porque, no fim das contas uma escola é isso: um pedaço da nossa história que escolhemos guardar. E se a lembrança é o que nos torna humanos, então o São José segue vivo em cada um de nós, não apenas como prédio, mas como afeto, como trilha, como raiz.
E eu, que um dia fui só mais uma aluna passando pelos corredores, sigo acreditando que a grande herança daquele colégio não está nos arquivos, mas nas pessoas que levou para o mundo. Pessoas como nós — que seguem carregando, com ternura, a certeza de que ali começou uma parte linda de nossas vidas.
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