Foto de capa da notícia

Encontro com a menina que fui

Às vezes, o espelho mais fiel é o tempo.

(Escrevi a crônica abaixo há dez anos e só agora decidi publicá-la)

Ela apareceu numa terça-feira nublada, dessas em que o céu parece entediado e a gente também. Eu saía do café onde costumo fingir que escrevo grandes coisas (na verdade, reviso notas mentais), quando a vi sentada num banco da praça, mexendo nos cadarços de um All Star surrado.

Demorei uns segundos para entender. Aquele cabelo rebelde, a franja desobediente, a camiseta do Colégio. Era eu. Aos quinze anos.

- Uau - disse ela, levantando os olhos. - Então é isso o que acontece com a gente aos quarenta?

Sorri. A pergunta vinha carregada de sarcasmo, do tipo que eu usava para disfarçar insegurança.

- É, mais ou menos isso - respondi. - Mas calma, a gente ainda tem todos os dentes.

Ela riu. Um riso meu, meio debochado, meio tímido. Então começamos a andar juntas, como se fôssemos duas versões do mesmo filme: uma feita com câmeras tremidas e sonhos desproporcionais; a outra, com menos efeitos especiais e mais consciência de roteiro.

Caminhamos pelas ruas onde crescemos. As mesmas calçadas rachadas, o mesmo barulho de portão batendo e cachorro latindo atrás. Em cada esquina, um eco do passado: o grupo do colégio, as primas que torciam o nariz para minhas ideias “estranhas”, os meninos que achavam graça em zombar de quem lia demais.

- Eles ainda moram por aqui — comentei.

- Quem?

- Aqueles. Os que riram quando você disse que queria ser escritora.

Ela franziu a testa.

- Nossa, eles ainda existem?

Antes que eu respondesse, o destino, sempre teatral, nos brindou com um reencontro: Cláudio, o antigo astro do time de futebol do clube, o mesmo que me chamava de “enciclopédia ambulante”. Agora exibia uma careca reluzente, uma barriga de chope e um sorriso automático.

- Nossa, nem te reconheci! - exclamou. - Você ficou... diferente!

Sorri educadamente, enquanto a menina ao meu lado cochichava:

- Ele quer dizer “melhor”.

Descobri que Cláudio agora gerenciava uma loja de pneus e postava vídeos motivacionais sobre “empreendedorismo e sucesso”. A esposa “não entendia o mundo dos negócios” e os filhos “precisavam aprender a competir”.

A menina riu baixinho. Eu também. Competir com quem, pensei, se ele ainda está tentando vencer os colegas do ensino médio?

O desfile continuou.

Carla, a prima que me chamava de “tonta” por gostar de filosofia, agora compartilhava frases sobre “energia do universo” entre uma reclamação e outra sobre o marido.

Rafaela, a amiga que zombava do meu jeito reservado, orgulhava-se de “não ter paciência pra gente fresca”, enquanto vivia uma vida guiada por fofocas e ansiolíticos.

E Mauro, o grande crítico do meu gosto musical, tornara-se um homem que se orgulhava de nunca ter lido um livro inteiro.

- Engraçado - disse a adolescente, depois de alguns encontros. - Eles parecem ter envelhecido antes da gente.

- Sim - respondi. - E não foi só o corpo.

Ela me olhou, curiosa.

- Como assim?

- É que tem gente que gasta tanta energia tentando desmerecer os outros que esquece de crescer por dentro. A alma fica atrofiada, sabe?

Ela assentiu devagar, como quem saboreia uma revelação.

- Então o problema nunca foi comigo...

- Nunca foi!

Sentamo-nos num banco para assistir ao pôr do sol, o mesmo de sempre, que tingia o céu de tons alaranjados. Na adolescência, eu via ali promessas de futuro. Agora, aos quarenta, vejo apenas beleza. E isso basta.

- Sabe - disse ela, mexendo numa mecha de cabelo - eu achava que eles eram melhores do que eu. Que eu era a estranha, a deslocada.

- A gente sempre acha isso quando é jovem - respondi. - Às vezes continua achando, mesmo depois.

Ela sorriu.

- Mas você parece tão tranquila agora.

- Aprendi que as pessoas realmente bem consigo mesmas não perdem tempo diminuindo os outros. É uma questão de energia... e de inteligência emocional.

Ela me observou, em silêncio.

- Então, quer dizer que o pessoal que falava mal da gente...

- Sofria, no fundo. E ainda sofre.

- Sofria de quê?

- De complexo de inferioridade. É o mal mais comum e menos admitido do mundo.

Rimos juntas. Eu, da constatação; ela, da ironia de ter levado vinte e cinco anos para entender o óbvio.

Paramos num café. Pedi um capuccino; ela, um refrigerante - claro. E enquanto eu mexia meu café, percebi algo curioso: já não havia diferença entre nós duas.

Eu era ela, com mais cicatrizes e menos ilusões.

E ela era eu, com mais coragem e menos juízo.

Juntas, formávamos uma mulher inteira.

- Então, no fim das contas - disse ela -a gente venceu?

Pensei um pouco.

- Não é bem vencer. A gente apenas não desistiu de ser quem era e isso, às vezes, é o maior triunfo.

Ela sorriu.

- Isso daria um bom título pra crônica.

Rimos. Sim, definitivamente éramos a mesma pessoa.

De volta pra casa, senti a leveza de quem deixa fantasmas dormindo em paz. A menina se despediu na esquina, com aquele aceno que eu sempre imaginei dar a mim mesma no futuro.

- Cuida bem da gente, tá? — pediu.

- Pode deixar. A gente tá em boas mãos agora.

E ela desapareceu, como um reflexo que entende que o espelho não é mais necessário.

Fiquei ali, observando as luzes se acenderem na cidade, e pensei em quantas vezes fui alvo de críticas, risadinhas e tentativas de diminuição. Percebi, então, o quanto tudo isso dizia sobre os outros e nada sobre mim.

Quem fala mal dos outros, no fundo, sofre do velho mal da alma pequena: o complexo de inferioridade travestido de esperteza. É um sadismo pobre, um modo de se sentir grande enquanto se rasteja por dentro.

E, convenhamos, também uma limitação intelectual. Porque uma mente verdadeiramente interessante está ocupada com ideias, não com vidas alheias.

A menina de quinze anos dentro de mim sorriu, invisível.

E eu, aos quarenta, finalmente entendi que ser luz num mundo de lâmpadas queimadas é um ato de coragem silenciosa.

Comentários

Compartilhe esta notícia

Faça login para participar dos comentários

Fazer Login